terça-feira, 14 de outubro de 2008

O Fim do Neoliberalismo

O Fim do Neoliberalismo

Quando vier o colapso, claro que será muito mais drástico nos Estados Unidos, porque lá a lenta expansão da demanda é fortalecida por meio de uma enorme expansão de crédito ao consumidor. Os bancos foram atingidos pelo boom especulativo imobiliário que, com a tradicional aliança entre otimistas auto-iludidos e a crescente picaretagem financeira, chegou ao auge. Eles estão sobrecarregados de dívidas não saldadas e recusam novos empréstimos para habitação e refinanciamento para os existentes. Com hipotecas domésticas em atraso e propriedades em atraso sendo executadas, os bancos estão à beira da ruína.

O que tornou a economia tão mais vulnerável a esse boom de crédito foi o fato de que os consumidores não usam seus empréstimos para comprar os bens de consumo tradicionais, que mantêm corpo e alma juntas, e têm portanto muita pouca variação: alimentos, roupas e coisas semelhantes. Em vez disso, os consumidores compram os bens supérfluos da moderna sociedade de consumo.

Engana-se quem pensa que esta descrição inicial corresponde à atual crise econômica mundial. As palavras são de Eric Hobsbawm, em sua obra Era dos Extremos (1995), e pertencem ao capítulo referente à Grande Crise de 1929. Descontadas as mudanças de tempo verbal, por mim adaptadas, é impressionante a semelhança com a conjuntura econômica dos últimos dois ou três anos.

No contexto de Fim da Guerra Fria, em 1989 John Williamson publicava o paper What Washington Means by Policy Reform (O Que Washington entende por Reforma Política), um documento que daria origem ao chamado Consenso de Washington, expressão do próprio Williamson. Segundo o entendimento das instituições financeiras de Washington e de diversos acadêmicos norte-americanos que utilizaram este texto como base, eram necessárias algumas reformas em termos de política econômica a fim de alavancar o desenvolvimento econômico latino-americano. As dez principais medidas sugeridas eram:

1) Disciplina fiscal
2) Redução dos gastos públicos
3) Reforma tributária
4) Taxa de juros determinada pelo mercado
5) Taxa de câmbio determinada pelo mercado
6) Liberalização comercial
7) Liberalização para IED (Investimento Direto Externo)
8) Privatização de empresas estatais
9) Desregulamentação (especialmente no que tange à legislação trabalhista)
10) Proteção à propriedade intelectual

Grosso modo, há dois traços principais que permeiam a visão do Consenso de Washington: a) a prescrição de redução da intervenção governamental; b) o entendimento de que mais liberdade traduz-se em mais competitividade. Ainda que durante a década de 90 fosse comum culpar Williamson por ajustes macroeconômicos que nem o próprio autor preconizava, quase 20 anos depois seria interessante ver a reação dos defensores deste modelo à luz da atual crise.

É preciso lembrar que há vários defensores deste modelo no próprio Brasil: ele foi escrito em Washington, mas ganhou vários adeptos no Brasil e na América do Sul. Para a tristeza de sues formuladores, o elemento mais presente na conjuntura econômica dos últimos dias foi a odiosa intervenção governamental. Ela esteve presente desde o pacote de mais de 700 bilhões de dólares, de iniciativa do Executivo norte-americano, até, mais recentemente, em diversas iniciativas européias, também bilionárias.

Do lado americano, chama a atenção a magnitude da quantia, um valor certamente suficiente para reerguer o soft power americano. Quantas escolas, postos de saúde, estradas, universidades o governo americano poderia financiar mundo afora com esta quantia? Recebendo ajuda econômica dos EUA nesses moldes, que Estados apoiaram o terrorismo? Quais se oporiam à sua liderança? Certamente não prescrevo que simplesmente se ignore o sistema financeiro e invista-se toda soma de recursos em novos New Deal’s ou Planos Marshall. É preciso, todavia, fazer um esforço de comparação contrafactual a fim de resgatar a importância da economia real.

Do lado europeu, observou-se um verdadeiro assassinato do Tratado de Maastricht (1992), nó institucional que limita os gastos públicos dos países-membro da União Européia e um dos principais responsáveis pelo estabelecimento de União Monetária e a conseguinte criação do euro. O Reino Unido aprovou um plano de 500 bilhões de libras a fim de garantir os depósitos bancários e melhorar a liquidez do sistema. O plano inclui a compra de dois grandes bancos, o RBS (Royal Bank of Scotland – patrocinador da Williams na Fórmula 1!) e o HBOS (Bank of Scotland and Halifax). A Alemanha vai disponibilizar um fundo de 100 bilhões de euros para capitalizar os bancos. Portugal, 20 bilhões

Em relação ao Brasil, recentemente levantou-se o debate se a economia real brasileira seria afetada. Não seria, já foi. A interdependência econômica, especialmente intensa no setor financeiro, ao afetar os bancos brasileiros gerou uma redução geral de crédito. Empresas como Aracruz, Sadia e Votorantim realizaram operações de derivativos cambiais (ativos financeiros pelos quais procuram se proteger das oscilações de câmbio, reduzindo custos para exportação) e obtiveram prejuízo de milhões. Na Bovespa, boa parte das grandes empresas assistiu a seu valor de mercado ser reduzido a metade em questão de alguns meses. A Gerdau, por exemplo, em 30 de maio deste ano tinha valor de mercado de 22,9 bilhões; no dia 8 de Outubro, apenas 8,4 bilhões (desvalorizou-se 14,5 bilhões). Assim como em várias partes do mundo, bilhões em riqueza simplesmente desaparecem do dia para a noite.

E o que diriam os formuladores do Consenso de Washington??? Para sua surpresa (ou talvez não fossem tão inocentes assim...), não apenas suas prescrições adotadas nos anos 90 falharam mas também o tipo de solução para a atual crise é o inverso ao que eles sugeriram. Privatização, disciplina fiscal, redução dos gastos públicos: tudo foi esquecido pelos policy makers norte-americanos e europeus a fim de tentar salvar a economia mundial. A mão invisível do mercado foi pintada com tinta fosforescente. É o fim do modelo neoliberal. José Simão ironizou: os EUA estão se convertendo em um país socialista, estão socializando todas suas perdas.

A questão do momento parece ser saber quais contornos terá o sistema internacional. Ascensão japonesa? Crescente fusão financeira entre China e EUA? Novo ciclo sistêmico de acumulação norte-americano? Tudo parece incerto e não arrisco uma opinião mais ousada. Parece evidente, todavia, que não mais se sustenta um dólar lastreado na guerra, cuja regulação institucional é vetada pelo unilateralismo norte-americano. A confiança dos agentes, essencial no modelo capitalista, não pode depender de guerras inventadas. A seleção natural do capitalismo deve ser contida por meio de instituições regulatórias capazes de reformar e democratizar o sistema internacional. Como demonstrou Ha-Joon Chang em sua obra Chutando a Escada, o livre-mercado como estratégia de desenvolvimento é um invento, uma utopia. A automação deste sistema deve ser contraposta pela ação humana.

O Separatismo na Bolívia

Acredita-se que Evo Morales constitui um fator de desestabilização na Bolívia e na América do Sul. Entretanto, eleito com 53,7% dos votos em dezembro de 2004, Morales acaba de ser referendado por mais de 67% dos eleitores que o confirmaram no cargo, em um processo cuja correção e legitimidade foram ressaltadas pelos observadores internacionais e pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Portanto, o veredicto do próprio povo boliviano parece contrastar com aquele conferido a Evo pelo senso-comum brasileiro e até mesmo por parcelas da mídia nacional.


Mais do que Evo e seu governo, o que está em questão é a existência do Estado Boliviano. Desta perspectiva, o fator de desestabilização vem dos separatistas. A secessão é protagonizada pela chamada região da Meia Lua, que concentra os departamentos de Pando, Beni, Tarija e Santa Cruz de la Sierra e é responsável por 80% do PIB boliviano, quase dois terços do território e cerca de 58% dos dez milhões de bolivianos. É de Tarija que vem quase 90% do gás consumido pelas indústrias brasileiras, especialmente a paulista. Além de sediar a segunda maior reserva de gás da América do Sul, a região também detém importantes recursos madeireiros e uma pujante produção de soja, que conta com significativa participação de produtores brasileiros. Trata-se de uma verdadeira “rebelião de elites”.


Ainda que a elite da região da Meia Lua possua um desejo histórico de autonomia, de mais de décadas, com a chegada de Morales ao poder intensificou-se o choque de projetos nacionais na Bolívia. Evo tornou-se o primeiro indígena a alcançar a Presidência, eleito com base em uma agenda de conteúdo fortemente antiliberal, o que incluía a promoção de setores sociais tradicionalmente excluídos. Assim, no início de seu governo, a nacionalização do setor de hidrocarbonetos gerou não atritos com o governo brasileiro mas também colocou em direções diametralmente opostas o governo boliviano e a elite autonômica.


O gás é recurso estratégico para que a elite da Meia Lua possa adequar a ambição econômica à representação política. É assim que surgem as chamadaseconomias de enclaveque, nos termos descritos pelo sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, correspondem a setores exportadores que permanecem alheios às outras atividades econômicas do país e desligam-se do desenvolvimento nacional. Como se não bastasse, Evo redirecionou parte do IDH, Imposto Direto sobre Hidrocarbonetos, o qual garantia aos departamentos 32% sobre a produção do gás. O recurso passou a ser destinado a uma política pública chamada Renta Dignidad, pela qual os bolivianos maiores de 60 anos passaram a receber uma renda mensal vitalícia.


Sem o gás, torna-se inviável um Estado “Camba”, como se denominam os habitantes da porção oriental do país. Mais do que isso, sem o reconhecimento externo, o separatismo não passa de mera força conspiratória. Recentemente, na reunião da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), nove presidentes sul-americanos documentaram seu apoio à constitucionalidade do governo Evo Morales e à integridade territorial da Bolívia.


É neste contexto que se insere a integração sul-americana – a agenda do século XXI – o meio para atingir as finalidades de cidadania e soberania que estiveram ausentes durante o século passado. A unidade da Bolívia e da América do Sul são duas faces da mesma moeda. Não se pode esperar dos que defendem a violência por privilégios quenascer algo generoso e grandioso como a integração sul-americana.