segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Democracia e o vírus do brasilianismo - por Wanderley Guilherme dos Santos

Democracia e o vírus do brasilianismo

Dói na alma, mas nem sempre a educação é um bem sem contra-indicação. As pesquisas reiteram a cada rodada que as classes subalternas têm respondido com apoio e votos às políticas sociais do governo.
Onde o governo está mais presente é ali onde, proporcionalmente, tem crescido seu eleitorado. Desmentindo o argumento de que o governo falha em suas promessas de campanha. As oposições e os descontentes da esquerda também o acusam de trair sua base popular de origem.
Alternativamente, conservadores e progressistas descobrem motivo de congraçamento entre si na crítica ao suposto paternalismo governamental, que seria a razão da aquiescência das massas antes que da promoção de sua consciência cívica e autonomia política. Como é natural, não se há de responder com imperfeições terrenas às exigências do mundo platônico das idéias.
Equivalente ideal de pureza orienta os murmúrios de insatisfação quanto ao funcionamento das instituições legislativas, maculadas que estariam por operadores corruptos, por vícios simultâneos de origem e decrepitude, além de repetidas manifestações do insultuoso hábito de legislar em causa própria.
Do Executivo, o defeito mínimo que se lhe atribui é o da incompetência gerencial. Mencionam-se ademais, aqui e ali, alheamento, preguiça e incapacidade de decisão. Pela esquerda histórica, do mesmo modo insatisfeita, se assegura que o Executivo se encontra manietado por escandalosos acordos com o conservadorismo. Ou seja, o Executivo, a bem dizer, nada faz e, quando faz, faz mal ou em má companhia, descaracterizando o bem-feito.
E assim marcharia o país entre corrupção e inércia, de cambulhada com alguns outros países, poucos, igualmente cretinos, à margem do benéfico período de progresso material aproveitado pelo resto do mundo. Nem as migalhas, nós estaríamos saboreando desta vez.
Trata-se, é claro, de um diagnóstico brasilianista. Tão grave quanto o bócio e a elefantíase, o brasilianismo é a enfermidade típica do atraso, mas com patológica distribuição sociologicamente distinta.
Ela contamina preferencialmente pessoas de elevada classe de renda, habitantes de áreas urbanas, sobretudo no Sudeste do país, com diplomas universitários concentrados nas áreas de ciências sociais, economia e comunicação.
Em geral, o brasilianismo não provoca estados febris nem suores inoportunos, apresentando como principais sintomas uma enorme confusão de raciocínio, miopia conceitual e daltonismo partidário, estimulando surtos de verborragia, descontrole de adjetivos e relaxamento das vias gramaticais. Eventualmente, uma diarréia substantiva.
Dotados de imbatível lógica esquizofrênica, os contaminados costumam passar por professores, cheios de comendas, donos de escritórios de consultoria, fartos de encomendas, colunistas bem remunerados, intrigantes de notinhas jornalísticas e assessores de grupos de interesse.
Honestíssimos, em sua maioria, acreditam no que dizem, com grande pompa e muita circunstância. Causa dissabor vê-los. Ao contrário dos portadores de bócio e de elefantíase, cônscios estes da enfermidade que os atormenta, os brasilianistas desfilam orgulhosamente a própria miséria como portariam um estandarte de cruzados. Em certo sentido, são mesmo monocromáticos. Felizmente, o brasilianismo não é sexualmente transmissível. Segundo alguns clínicos, porque não é sexualmente ativo. Polêmicas médicas.
Embora bem-educados, os brasilianistas têm horror à leitura, particularmente de matérias sobre o Brasil, à exceção, obviamente, dos artigos que escrevem uns para os outros. Ignoram as estatísticas, têm vaga noção do que significa o coeficiente de Gini e não fazem a menor idéia do que foi a história da América do Sul nem do percurso secular do grande mito que são os Estados Unidos. Da Europa, conhecem os vinhos, os queijos e o carnaval de Veneza, em pacote turístico de sete dias. Constituem a mais acachapante evidência do fracasso da universidade brasileira.
Jamais um brasilianista aceitará a tese de que os pobres votam por uma razão idêntica à sua, isto é, por interesse. E, conseqüentemente, também rejeitarão a hipótese de que os carentes sejam tão racionais quanto eles, os poucos abundantes. Negarão que pertençam ao mesmo gênero de distribuição de privilégios os subsídios à exportação, a remuneração dos títulos da dívida pública e os empréstimos pré-consignados. São favoráveis ao controle da natalidade da população de salário mínimo e à pena de morte, em certos casos, que é uma forma substitutiva, ou complementar, de controle da mortalidade. Consideram-se liberais de boa cepa, pois têm entre seus melhores amigos, segundo testemunho voluntário, um negro, um judeu e um gay. A discriminação dos melhores amigos é a confissão inconsciente da lista de preconceitos que cultuam.
Não obstante os brasilianistas, ou melhor, inclusive com parcela do trabalho deles, vai se livrando das algemas do arcaísmo um país em que os conservadores parecem ter, finalmente, abandonado a estratégia de rondar os quartéis sempre que contrariados pela política. A integração material da sociedade avança pela via do mercado, a despeito dos revolucionários e dos adoradores dos monopólios, e no qual a Constituição de 1988 conseguiu evitar a institucionalização de práticas discriminatórias.
O custo de combater preconceitos e discriminações é baixo, no Brasil, porque não são protegidos por lei. Aspecto crucial, cuja relevância é perfeitamente reconhecida pelos negros da África do Sul e dos Estados Unidos e pelos antigos judeus imigrantes argentinos, por exemplo.
A sociedade precisa dos brasilianistas na exata medida em que as deficiências materiais são ainda tamanhas e a tentação para a autocomplacência é enorme. Mas estão sobre-representados na produção e controle da informação pública, comprometendo com sua vesguice melhor avaliação do que vai pelo mundo e pelo Brasil.
O formigamento social é extenso, a vida comunitária se enriquece municípios afora, mas de nada disso a maioria da população toma conhecimento, monopolizado que está o mecanismo de produzir idéias e imagens. Há evidente descompasso entre o processo de democratização em curso na vida política e social e o processo de concentração oligopolista no sistema de captação e difusão das novidades.
A unanimidade brasilianista que absorveu as fontes de informação prejudica a democracia, constitui ameaça aos direitos do cidadão de estar servido de fontes alternativas de opinião, nega, na prática, o pluralismo ideológico, enquanto busca a massificação bovina de leitores e telespectadores. Nunca o Brasil moderno, período ditatorial à parte, enfrentou inimigo tão poderoso: aquele que, tal como um partido subversivo, usufrui da liberdade para asfixiá-la.
O Brasil real é complexo, pleno de deficiências e de linhas de força, não está representado na rede para-ideológica de informação, tomada de assalto pelo brasilianismo.
O brasilianismo é a doença infantil da ditadura da opinião. De onde se segue a divergência entre o que ocorre no país e o que pensam sobre ele aqueles que se imaginam educados. Para estes, a educação não vale coisa alguma.
Wanderley Guilherme dos Santos é membro da Academia Brasileira de Ciências
Publicado originalmente no jornal Valor Econômico

Em época de vestibular...

Uma questão! Leia:
"Se nada for feito, caberá a quem venha a ser o candidato [XXX] nas próximas eleições apresentar ao eleitorado um programa muito claro com reformas eleitorais, partidárias e da máquina pública. Caberá anunciar de antemão a disposição, se eleito, de recorrer aos mecanismos de consulta à população para validar essas reformas e mesmo, se entender necessário, solicitar ao Congresso uma lei delegada para fazê-las."
De quem são as palavras acima??
a) Evo Morales
b) Hugo Chávez
c) Lula
d) FHC
e) Rafael Corrêa

As palavras são de 5 de junho de 2005.
E a resposta é....Alternativa d!
Quem diria, hein?
Dúvidas? Conferir em: http://www.ifhc.org.br/UserFiles/File/artigos%20FHC/2005-06.pdf

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O Fim do Neoliberalismo

O Fim do Neoliberalismo

Quando vier o colapso, claro que será muito mais drástico nos Estados Unidos, porque lá a lenta expansão da demanda é fortalecida por meio de uma enorme expansão de crédito ao consumidor. Os bancos foram atingidos pelo boom especulativo imobiliário que, com a tradicional aliança entre otimistas auto-iludidos e a crescente picaretagem financeira, chegou ao auge. Eles estão sobrecarregados de dívidas não saldadas e recusam novos empréstimos para habitação e refinanciamento para os existentes. Com hipotecas domésticas em atraso e propriedades em atraso sendo executadas, os bancos estão à beira da ruína.

O que tornou a economia tão mais vulnerável a esse boom de crédito foi o fato de que os consumidores não usam seus empréstimos para comprar os bens de consumo tradicionais, que mantêm corpo e alma juntas, e têm portanto muita pouca variação: alimentos, roupas e coisas semelhantes. Em vez disso, os consumidores compram os bens supérfluos da moderna sociedade de consumo.

Engana-se quem pensa que esta descrição inicial corresponde à atual crise econômica mundial. As palavras são de Eric Hobsbawm, em sua obra Era dos Extremos (1995), e pertencem ao capítulo referente à Grande Crise de 1929. Descontadas as mudanças de tempo verbal, por mim adaptadas, é impressionante a semelhança com a conjuntura econômica dos últimos dois ou três anos.

No contexto de Fim da Guerra Fria, em 1989 John Williamson publicava o paper What Washington Means by Policy Reform (O Que Washington entende por Reforma Política), um documento que daria origem ao chamado Consenso de Washington, expressão do próprio Williamson. Segundo o entendimento das instituições financeiras de Washington e de diversos acadêmicos norte-americanos que utilizaram este texto como base, eram necessárias algumas reformas em termos de política econômica a fim de alavancar o desenvolvimento econômico latino-americano. As dez principais medidas sugeridas eram:

1) Disciplina fiscal
2) Redução dos gastos públicos
3) Reforma tributária
4) Taxa de juros determinada pelo mercado
5) Taxa de câmbio determinada pelo mercado
6) Liberalização comercial
7) Liberalização para IED (Investimento Direto Externo)
8) Privatização de empresas estatais
9) Desregulamentação (especialmente no que tange à legislação trabalhista)
10) Proteção à propriedade intelectual

Grosso modo, há dois traços principais que permeiam a visão do Consenso de Washington: a) a prescrição de redução da intervenção governamental; b) o entendimento de que mais liberdade traduz-se em mais competitividade. Ainda que durante a década de 90 fosse comum culpar Williamson por ajustes macroeconômicos que nem o próprio autor preconizava, quase 20 anos depois seria interessante ver a reação dos defensores deste modelo à luz da atual crise.

É preciso lembrar que há vários defensores deste modelo no próprio Brasil: ele foi escrito em Washington, mas ganhou vários adeptos no Brasil e na América do Sul. Para a tristeza de sues formuladores, o elemento mais presente na conjuntura econômica dos últimos dias foi a odiosa intervenção governamental. Ela esteve presente desde o pacote de mais de 700 bilhões de dólares, de iniciativa do Executivo norte-americano, até, mais recentemente, em diversas iniciativas européias, também bilionárias.

Do lado americano, chama a atenção a magnitude da quantia, um valor certamente suficiente para reerguer o soft power americano. Quantas escolas, postos de saúde, estradas, universidades o governo americano poderia financiar mundo afora com esta quantia? Recebendo ajuda econômica dos EUA nesses moldes, que Estados apoiaram o terrorismo? Quais se oporiam à sua liderança? Certamente não prescrevo que simplesmente se ignore o sistema financeiro e invista-se toda soma de recursos em novos New Deal’s ou Planos Marshall. É preciso, todavia, fazer um esforço de comparação contrafactual a fim de resgatar a importância da economia real.

Do lado europeu, observou-se um verdadeiro assassinato do Tratado de Maastricht (1992), nó institucional que limita os gastos públicos dos países-membro da União Européia e um dos principais responsáveis pelo estabelecimento de União Monetária e a conseguinte criação do euro. O Reino Unido aprovou um plano de 500 bilhões de libras a fim de garantir os depósitos bancários e melhorar a liquidez do sistema. O plano inclui a compra de dois grandes bancos, o RBS (Royal Bank of Scotland – patrocinador da Williams na Fórmula 1!) e o HBOS (Bank of Scotland and Halifax). A Alemanha vai disponibilizar um fundo de 100 bilhões de euros para capitalizar os bancos. Portugal, 20 bilhões

Em relação ao Brasil, recentemente levantou-se o debate se a economia real brasileira seria afetada. Não seria, já foi. A interdependência econômica, especialmente intensa no setor financeiro, ao afetar os bancos brasileiros gerou uma redução geral de crédito. Empresas como Aracruz, Sadia e Votorantim realizaram operações de derivativos cambiais (ativos financeiros pelos quais procuram se proteger das oscilações de câmbio, reduzindo custos para exportação) e obtiveram prejuízo de milhões. Na Bovespa, boa parte das grandes empresas assistiu a seu valor de mercado ser reduzido a metade em questão de alguns meses. A Gerdau, por exemplo, em 30 de maio deste ano tinha valor de mercado de 22,9 bilhões; no dia 8 de Outubro, apenas 8,4 bilhões (desvalorizou-se 14,5 bilhões). Assim como em várias partes do mundo, bilhões em riqueza simplesmente desaparecem do dia para a noite.

E o que diriam os formuladores do Consenso de Washington??? Para sua surpresa (ou talvez não fossem tão inocentes assim...), não apenas suas prescrições adotadas nos anos 90 falharam mas também o tipo de solução para a atual crise é o inverso ao que eles sugeriram. Privatização, disciplina fiscal, redução dos gastos públicos: tudo foi esquecido pelos policy makers norte-americanos e europeus a fim de tentar salvar a economia mundial. A mão invisível do mercado foi pintada com tinta fosforescente. É o fim do modelo neoliberal. José Simão ironizou: os EUA estão se convertendo em um país socialista, estão socializando todas suas perdas.

A questão do momento parece ser saber quais contornos terá o sistema internacional. Ascensão japonesa? Crescente fusão financeira entre China e EUA? Novo ciclo sistêmico de acumulação norte-americano? Tudo parece incerto e não arrisco uma opinião mais ousada. Parece evidente, todavia, que não mais se sustenta um dólar lastreado na guerra, cuja regulação institucional é vetada pelo unilateralismo norte-americano. A confiança dos agentes, essencial no modelo capitalista, não pode depender de guerras inventadas. A seleção natural do capitalismo deve ser contida por meio de instituições regulatórias capazes de reformar e democratizar o sistema internacional. Como demonstrou Ha-Joon Chang em sua obra Chutando a Escada, o livre-mercado como estratégia de desenvolvimento é um invento, uma utopia. A automação deste sistema deve ser contraposta pela ação humana.

O Separatismo na Bolívia

Acredita-se que Evo Morales constitui um fator de desestabilização na Bolívia e na América do Sul. Entretanto, eleito com 53,7% dos votos em dezembro de 2004, Morales acaba de ser referendado por mais de 67% dos eleitores que o confirmaram no cargo, em um processo cuja correção e legitimidade foram ressaltadas pelos observadores internacionais e pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Portanto, o veredicto do próprio povo boliviano parece contrastar com aquele conferido a Evo pelo senso-comum brasileiro e até mesmo por parcelas da mídia nacional.


Mais do que Evo e seu governo, o que está em questão é a existência do Estado Boliviano. Desta perspectiva, o fator de desestabilização vem dos separatistas. A secessão é protagonizada pela chamada região da Meia Lua, que concentra os departamentos de Pando, Beni, Tarija e Santa Cruz de la Sierra e é responsável por 80% do PIB boliviano, quase dois terços do território e cerca de 58% dos dez milhões de bolivianos. É de Tarija que vem quase 90% do gás consumido pelas indústrias brasileiras, especialmente a paulista. Além de sediar a segunda maior reserva de gás da América do Sul, a região também detém importantes recursos madeireiros e uma pujante produção de soja, que conta com significativa participação de produtores brasileiros. Trata-se de uma verdadeira “rebelião de elites”.


Ainda que a elite da região da Meia Lua possua um desejo histórico de autonomia, de mais de décadas, com a chegada de Morales ao poder intensificou-se o choque de projetos nacionais na Bolívia. Evo tornou-se o primeiro indígena a alcançar a Presidência, eleito com base em uma agenda de conteúdo fortemente antiliberal, o que incluía a promoção de setores sociais tradicionalmente excluídos. Assim, no início de seu governo, a nacionalização do setor de hidrocarbonetos gerou não atritos com o governo brasileiro mas também colocou em direções diametralmente opostas o governo boliviano e a elite autonômica.


O gás é recurso estratégico para que a elite da Meia Lua possa adequar a ambição econômica à representação política. É assim que surgem as chamadaseconomias de enclaveque, nos termos descritos pelo sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, correspondem a setores exportadores que permanecem alheios às outras atividades econômicas do país e desligam-se do desenvolvimento nacional. Como se não bastasse, Evo redirecionou parte do IDH, Imposto Direto sobre Hidrocarbonetos, o qual garantia aos departamentos 32% sobre a produção do gás. O recurso passou a ser destinado a uma política pública chamada Renta Dignidad, pela qual os bolivianos maiores de 60 anos passaram a receber uma renda mensal vitalícia.


Sem o gás, torna-se inviável um Estado “Camba”, como se denominam os habitantes da porção oriental do país. Mais do que isso, sem o reconhecimento externo, o separatismo não passa de mera força conspiratória. Recentemente, na reunião da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), nove presidentes sul-americanos documentaram seu apoio à constitucionalidade do governo Evo Morales e à integridade territorial da Bolívia.


É neste contexto que se insere a integração sul-americana – a agenda do século XXI – o meio para atingir as finalidades de cidadania e soberania que estiveram ausentes durante o século passado. A unidade da Bolívia e da América do Sul são duas faces da mesma moeda. Não se pode esperar dos que defendem a violência por privilégios quenascer algo generoso e grandioso como a integração sul-americana.